sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Short Cuts - Cenas da Vida (1993)

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Short Cuts, EUA, 1993
Direção: Robert Altman


Uma das características mais evidentes dessa situação, para Deleuze, era a fragmentação da narrativa tradicional. Ao invés de um protagonista clássico, o longa-metragem citado tinha uma porção de personagens que dividiam o tempo de tela igualmente. Pois Robert Altman se especializaria nesse tipo de narrativa fragmentada, refinando-a continuamente, até chegar ao apogeu em “Short Cuts – Cenas da Vida” (EUA, 1993), um dos maiores filmes dos anos 1990 e marco fundamental dos chamados “hyperlink movies”, filmes que utilizam essa técnica narrativa.

“Short Cuts” (cuja tradução literal seria “Atalhos”, um nome perfeitamente adequado) foi muito elogiado na época do lançamento, sobretudo pelo roteiro arrojado do próprio Altman. O cineasta deu um jeito de interligar os personagens de sete contos e um poema escritos pelo escritor minimalista Raymond Carver, compondo um mosaico riquíssimo de 22 personagens que marcam passo, em Los Angeles, vivendo vidas banais e melancólicas. Em Altman, e sobretudo em “Short Cuts”, os personagens começam principais, viram secundários, tornam-se novamente principais, e assim por diante, tudo dentro do mesmo filme. A narrativa é fragmentada, sim, mas extraordinariamente coesa.

Na verdade, o cineasta foi capaz de construir uma das obras mais sólidas e coerentes das últimas décadas, apostando na narrativa fragmentada. Altman é o rei do acaso na tela do cinema. Nos filmes dele, as relações humanas são regidas por esse caráter randômico, aleatório. As pessoas se conhecem, ficam amigas, depois inimigas, se afastam, se aproximam, sempre por razões banais e fortuitas: um acidente de carro, um esbarrão durante uma ópera, a encomenda de um bolo. Robert Altman filma a vida como ela é: monótona, solitária, cheia de encontros e desencontros definidos pela sorte, sobre os quais não temos nenhum controle.

“Short Cuts” eleva o papel do acaso na vida urbana contemporânea a um patamar fundamental, quando reduz ao mínimo as interferências das escolhas de cada indivíduo no desenrolar de seus cotidianos. No filme, cada personagem passa de ator do espetáculo da vida a mero espectador passivo. Um exemplo: quando a garçonete (Lily Tomlin) atropela um garoto de oito anos (Zane Cassidy), ela não escolheu fazer isso. Claro que não. Ela pára, ajuda o menino a se levantar, até se oferece para levá-lo em casa. Não há qualquer tipo de escolha. É um incidente sem importância, que no entanto vai se mostrar crucial para o futuro de vários dos 22 personagens enfocados pelo filme.

O filme não tem protagonistas, nem coadjuvantes. São 22 pessoas que vivem em Los Angeles (EUA), em bairros de classe média, e levam vidas normais. Há um âncora de TV (Bruce Davison), e sua mulher socialite (Andie McDowell). O pai do jornalista (Jack Lemmon) aparece de surpresa, após anos sem dar notícia. Há um padeiro (Lyle Lovett) que passa trotes telefônicos e um policial (Tim Robbins) que trai a esposa (Madeleinw Stowe), que posa nua para uma amiga (Julianne Moore). Talvez a personagem mais interessante de todas seja a atendente de telessexo (Jennifer Jason Leigh), que atende aos telefonemas com voz lasciva e diz obscenidades despreocupadamente, sob os olhares enciumados do marido com quem não faz sexo (Chris Penn), enquanto troca a fralda de um rebento.

O mosaico humano de “Short Cuts” não consegue decidir nada sobre o futuro. Os personagens parecem aturdidos, não têm um destino final quanto caminham pela paisagem urbana. Apenas vagam, esperam por algo que não sabem definir, e que nunca surge. Sem paixão, sem vigor, apenas caminham pelos atalhos, melancólicos. São peças de um quebra-cabeça que não se encaixam. E Robert Altman sabe disso: “A visão de mundo de Raymond Carver, como talvez a minha própria, poderia ser chamada de sombria. Estamos ligados por atitudes similares acerca da natureza arbitrária do acaso no esquema geral das coisas”, escreve ele, no prefácio do livro de Carver.

Além disso, Altman recusa a utilização de artifícios dramáticos, como um final redentor que pudesse dar um significado maior ao acaso. Ele evita encerrar a obra da forma tradicional, com algum acontecimento extraordinário. Aliás, há algo bíblico no filme; observe como “Short Cuts” abre com tomadas de helicópteros que combatem uma invasão de mosquitos, e encerra com um terremoto. Pragas bíblicas sobre Los Angeles, talvez? Estaria o cineasta sugerindo algum tipo de intromissão divina nas vidinhas dos personagens? Quem sabe?

Achei ainda outro texto excepcional, que traça um paralelo entre "Short Cuts", "Magnolia" e "Crash":http://cinemaelegante.wordpress.com/2006/10/18/de-short-cuts-a-crash/

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