Dó
é a palavra que melhor define a sensação que tive ao ler “A Hora da Estrela”.
Uma personagem que de tão pobre só comia cachorro quente, que ao ser desprezada
pedia desculpas, que se sente culpada por ser traída, e que mal tinha
consciência de existir. Macabéia era desprezada por todos, principalmente pela
autora.
Este
foi o último livro de Clarice Lispector, quando ela já estava com sérios problemas
de saúde, provavelmente desgostosa da vida. Então a sensação que me dá é que
ela descarregou na personagem toda a dor que estava sentindo naquele momento e
o descontentamento com o mundo.
A
história transmite uma sensação angustiante, de desamparo, como se nos
mostrasse como estamos sozinhos no mundo, como o ser humano é egoísta e está
pouco se lixando pro que o outro sente.
Além
da história em si ser incrível, é principalmente surpreendente a forma inédita
que Clarice usou para escrever este livro. Ela cria uma autor fictício, Rodrigo
S.M. e se escondendo por trás dele, ela vai fazendo comentários no decorrer da
história, interagindo e intervindo na trama, e, acima de tudo, julgando a
personagem.
O
filme “A Hora da Estrela”, de 1985, é quase tão bom quanto o livro. Digo quase
porque consegue traduzir para a tela a riqueza da história de Macabéia, mas
deixa pra trás o elemento mais interessante do livro, que é essa já comentada
interação da autora com a personagem, algo só possível na literatura.
Curiosamente,
a atriz Marcélia Cartaxo (que interpretou Macabéia no cinema) foi a primeira
brasileira a ganhar um prêmio internacional. Levou o Urso de Ouro em Berlim
pelo papel de Macabéia em 1986. O filme tem também a participação de Fernanda
Montenegro no papel da cartomante Madama Carlota e foi reexibido com a presença
da protagonista em cópia restaurada na Mostra de Cinema de São Paulo em 2010.
Ademais, é curioso perceber que a Clarice
Lispector estava perto de morrer e ela provavelmente tinha essa sensação de
proximidade muito forte dentro dela. Tanto que ela de certa forma mata a
protagonista no final do livro sem dó nem piedade. E tem uma frase em especial
que deixa essa sensação de fim da vida bem explícita: “Escrevo porque sou um
desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser.”
Macabéia
é uma personagem tão sofrida e tratada com tanto desprezo pela autora que a
morte é acontecimento inevitável pra ela. É como se a morte (e não só a morte,
a morte de uma forma cruel, brutal) fosse o ápice do calvário ao qual a
personagem teve que percorrer. Quase como Cristo carregando a cruz, ela viveu
uma vida cheia de provações, de sofrimento, para no fim morrer de uma forma
repentina e trágica.
“-
Eu vou ter tanta saudade de mim quando morrer” diz a
personagem. “Iria ela dar adeus a si mesma?” questiona a autora. Não
bastasse a morte em si, que já é uma desgraça, a personagem ainda tem a dor de
saber que ninguém sentirá sua falta além dela mesma. Apenas ela dirá adeus (a
si mesma).
O
livro tem diversas frases incríveis, que dariam, cada uma, viagens de dezenas
de parágrafos. Cito aqui algumas que guardo pra mim:
“Pensar é um ato. Sentir é um fato”
“Já que sou, o jeito é ser.”
“Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada.”
“... Só então vestia-se de si mesma,
passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser.”
“Em todo caso o futuro parecia vir a
ser muito melhor. Pelo menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente,
sempre há um melhor para o ruim.”
“Quanto a mim, autor de uma vida, me
dou mal com a repetição: a rotina me afasta de minhas possíveis novidades”.
“Sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto.”
“Muitas coisas sabia que não sabia entender.”
Um comentário:
Absolutamente demais! Gratidão pelo compartilhar!
Postar um comentário